STF, MC no HC 215.207, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática de 11.02.2023: Ocorrências relacionadas a colisões no trânsito, sobretudo quando resultam em vítimas fatais, suscitam desafios que dizem respeito à identificação do elemento subjetivo envolvido, ou seja, se o comportamento causador do resultado morte deve ser reprovado penalmente a título de culpa ou de dolo. Mais precisamente, trata-se de determinar se o agente (no mais das vezes, o condutor do veículo) agiu, para usar a terminologia clássica, com dolo eventual ou culpa consciente. A distinção entre eles encontra-se na vontade do agente, no querer existente no ato. Somente haverá dolo eventual se for afirmativa a resposta à indagação sobre se o condutor do veículo agiria do mesmo modo se tivesse ciência do resultado danoso. Não basta, para o reconhecimento do crime doloso, a previsibilidade do resultado danoso, exigindo-se que o agente assuma o risco de produzi-lo. É essa a inteligência do art. 18, I, do Código Penal, na segunda parte. É necessário demonstrar a indiferença quanto à provável consequência.
Na jurisprudência alemã, afirma-se que dolo eventual e culpa consciente diferenciam-se na medida em que o autor negligente (culposo), embora vislumbre a possibilidade de ocorrência do resultado, não o aprova e confia que ele não vai ocorrer; ao passo que o agente com dolo eventual “aprova” o resultado, na medida em que o assume como “parte do pacote” de sua ação ou que ao menos se resigna com a realização típica.
Tais formulações teóricas, relativas à estrutura do crime doloso, demonstram, como tradicionalmente se entende, que o dolo é composto por um elemento cognitivo – consciência – e por um elemento volitivo – vontade -, os quais, na análise do caso concreto, devem ser provados separadamente.
Quanto ao elemento cognitivo, a questão que se põe é a seguinte: a paciente, condutora do veículo causador da colisão, previu ou poderia ter previsto a possibilidade de que seu comportamento poderia matar alguém? Os elementos objetivos do caso concreto indicariam que poderia antever mentalmente a possibilidade (ou até mesmo a probabilidade) de um infortúnio fatal, quais sejam: motorista sem habilitação, com pouca experiência na condução de veículo automotor, trafegando em baixa velocidade, transitando em pista estreita e com passagem de um veículo por vez. Aquele que atua dessa maneira, tendo como critério o homem médio, não tem qualquer razão para crer que, ao final, certamente tudo terminará bem. Há, portanto, previsibilidade.
No tocante ao elemento volitivo, respondida positivamente a pergunta sobre a previsibilidade de que o comportamento poderia resultar em morte, é necessário indagar se o paciente tivera postura de assunção em relação à morte ou se, no mínimo, estava de acordo com ela. É neste segundo elemento — volitivo — que se encontra a fronteira entre o dolo e a culpa. Aqui o ponto a ser aclarado.
Deveras, o art. 419 do Código de Processo Penal, alusivo ao encerramento da primeira fase do procedimento aplicável aos crimes dolosos contra a vida, dispõe que o juiz remeterá os autos ao órgão competente quando se convencer da existência de crime diverso e não for competente para o julgamento.
Tal desclassificação, se afastada indevidamente, importa em graves consequências para a defesa, deslocando o processo ao Tribunal do Júri, cujo julgamento é conhecidamente atécnico e, às vezes, apaixonado, a depender do local onde ocorra. Além disso, as diferenças de penas entre um e outro crime são de relevante monta.
Os contornos do fato delitivo evidenciam a existência de séria controvérsia a respeito da real existência de indício de assunção do risco de produzir o resultado morte — elemento imprescindível à submissão ao julgamento pelo Júri popular (art. 413 do CPP) —, havendo razoável campo para discussão sobre amoldar-se a conduta da paciente ao conceito de culpa consciente.
Não se desconhece que, em havendo dúvida a respeito da natureza da conduta praticada, a decisão sobre a existência de dolo ou culpa e, portanto, da possibilidade de desclassificação da imputação de homicídio doloso para culposo, deve ficar a cargo do Tribunal do Júri, por força do princípio do Juiz Natural.
Contudo, mesmo na hipótese em que o juiz de primeiro grau entende presentes elementos indicativos de dolo eventual em um caso de homicídio, ou tem como duvidoso o caráter da infração, o Tribunal de Justiça é livre para, ao receber o recurso, reapreciar as provas, afastar a existência de dolo e despronunciar o réu, não sendo o Juiz de primeiro grau soberano nessa análise. No mesmo sentido, é possível que os Tribunais superiores ou, no caso, o Supremo Tribunal Federal, substituam a valoração jurídica realizada nas instâncias antecedentes, com vistas a reconhecer eventual ilegalidade.
Tenho que, os contornos do caso concreto sugerem ser plausível a discussão a respeito da tese de ausência de subsídios mínimos a respeito de dolo eventual, esclarecendo-se que, sendo impossível adentrar à mente do autor do fato, no caso a paciente, afim de descobrir a vontade existente no agir, cumpre extrair tal elemento dos dados objetivos do evento, sem presunções afastadas de dados empíricos.
Se a controvérsia acerca dos conceitos jurídicos de dolo eventual e culpa consciente produz enormes dificuldades ao Juiz togado, que atua de forma técnica, com base em profundos estudos das ciências penais, o que se pode esperar de um julgamento realizado por leigos, que atuam a partir das íntimas convicções, sem explicitação das razões que orientam seus julgamentos?
Destaco que o exame da questão objeto desta impetração não se situa no âmbito do revolvimento do conjunto fático-probatório, mas importa, isto sim, em revaloração dos fatos postos nas instâncias inferiores, o que é viável em sede de habeas corpus.
Assim, sem prejuízo de exame mais aprofundado por ocasião do julgamento de mérito, entendo presentes os pressupostos autorizadores da medida acauteladora requerida, uma vez verificada a plausibilidade jurídica do direito articulado (fumus boni juris) e a possibilidade de lesão irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora), estando iminente a submissão da paciente a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Ante o exposto, concedo medida liminar para suspender o andamento do processo, obstando-se a realização de sessão perante o Tribunal do Júri, até o julgamento de mérito deste Habeas Corpus.