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Injustiça epistêmica na valoração do silêncio do réu e da palavra dos policiais

STJ, REsp 2.037.491, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 06.06.2023: Quem quer que se veja envolvido em um procedimento investigativo da justiça criminal tem o direito de se manter em silêncio e não colaborar. O fato de que a CF de 1988 tenha disposto, em seu art. 5º, LXIII, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, não deixa dúvidas quanto à não recepção do art. 198 do CPP, quando diz que o silêncio do acusado, ainda que não importe em confissão, poderá se constituir elementos para a formação do convencimento do juiz. Ora, quando a Constituição reconhece o direito ao silêncio, restam excluídas de nosso ordenamento regras que autorizem situações em que o exercício de um direito gere prejuízos ao cidadão. Ter direito ao silêncio significa poder exercê-lo sem que, por isso, seja punido. E tanto ficar em silêncio constitui um direito, que pesa sobre o Estado a obrigação de explicá-lo a toda e qualquer pessoa, no exato momento de sua prisão.
No caso dos autos, a absolvição em 1ª instância do réu foi revista pelo tribunal que, acolhendo a apelação interposta pela acusação, condenou o réu pela prática do delito incurso no art. 33, caput, da Lei 11.343/2006. Na linha argumentativa desenvolvida pelo TJSP, a negativa do réu em juízo quanto à comissão do delito seria estratégia para evitar a condenação. Estas as exatas palavras utilizadas no acórdão recorrido: “Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria apresentado perante a autoridade policial, quando entretanto, valeu-se do direito constitucional ao silêncio, comportamento que, se por um lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera tentativa de se livrar da condenação”. Houve, portanto, violação direta ao art. 186 do CPP.
O raciocínio enviesado que concedeu inequívoco valor de verdade à palavra dos policiais e que interpretou a negativa do acusado em juízo como mentira, teve o silêncio do réu em sede policial como ponto de partida. A instância de segundo grau erroneamente preencheu o silêncio do réu com palavras que ele pode nunca ter pronunciado, já que, do ponto de vista processual-probatório, tem-se apenas o que os policiais afirmaram haver escutado, em modo informal, ainda no local do fato.
Decidiu o Tribunal estadual, então, que, se de um lado havia razões para crer que o réu mentia em juízo, de outro, estavam os desembargadores julgadores autorizados a acreditar que os policiais é que traziam relatos correspondentes à realidade, ao afirmarem: 1) que avistaram o acusado descartando as drogas que foram encontradas no chão, 2) que a balança de precisão que estava no interior de um carro abandonado seria do acusado e, adicionalmente, 3) que ainda na cena do crime, o recorrente haveria confessado informalmente que, sim, traficava. Essa narrativa toma como verídica uma situação em que o investigado ofereceu àqueles policiais, desembaraçadamente, a verdade dos fatos, em retribuição à empatia com que fora tratado por eles; como se houvesse confidenciado um segredo a novos amigos, e não confessado a prática de um delito a agentes da lei. Com a devida vênia, esta sim é uma hipótese implausível. Se é que de fato o acusado confirmou para os policiais que traficava por passar por dificuldades financeiras, é ingenuidade supor que o tenha feito em cenário totalmente livre da mais mínima injusta pressão.
Para o que importa à análise do presente caso, são oportunas as reflexões relativas às chamadas injustiças epistêmicas. Conforme nos ensinam os seus estudiosos, sociedades marcadas por preconceitos identitários — como, aliás, é o caso da sociedade brasileira — acabam por apresentar trocas comunicativas injustas. Por vezes, a pessoa deixa de ser considerada enquanto sujeito capaz de conhecer o mundo adequadamente pelo simples fato de ser quem é. Sobre essas situações, Miranda Fricker explica que se comete uma injustiça epistêmica testemunhal quando um ouvinte reduz a credibilidade do relato oferecido por um falante por ter, contra ele, ainda que não de forma consciente e deliberada, algum(s) preconceito(s) identitário(s) (FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007). Negros em sociedades racistas, mulheres e pessoas LGBTQIA+ em sociedades machistas, pessoas com deficiência em sociedades capacitistas são alguns exemplos de vítimas sistemáticas de injustiça epistêmica testemunhal. Indivíduos provenientes de grupos sociais vulnerabilizados têm de enfrentar o peso dessa realidade opressora nos mais diversos contextos, inclusive no contexto da justiça criminal.
Nessa perspectiva, e ante a circunstância de que o recorrente é pardo, cabe a lembrança do pensamento de Sueli Carneiro, acerca do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira: “No caso do negro, a cor opera como metáfora de um crime de origem da qual a cor é uma espécie de prova, marca ou sinal que justifica a presunção de culpa. Para Foucault, ‘ninguém é suspeito impunemente’, ou seja, a culpa presumida pelo a priori cromático desdobra-se em punição a priori, preventiva e educativa. A suspeição transforma a cena social para os negros em uma espécie de panóptico virtual, ‘a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é, não do que se faz, mas do que se pode fazer’. Assim, a própria cena social é onde se realiza a vigilância e a punição como tecnologias de controle social”. (CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 125).
Ademais, analisando o fenômeno das falsas confissões, autores como Jennifer Lackey sinalizam que o sistema de justiça acaba praticando múltiplas injustiças epistêmicas contra um mesmo sujeito: ao confessar (ainda que sob tortura, maus tratos, ameaça, pressão psicológica etc.), o investigado/acusado tem rapidamente reconhecida a sua credibilidade; quando, ao contrário, busca se retratar, já não é considerado merecedor do mais mínimo grau de credibilidade. Trata-se de um paradoxo: acreditam que o relato do sujeito corresponde a uma correta reconstrução dos fatos precisamente quando ele tem menos preservada a sua autonomia cognitiva; de outro lado, quando mais pode trazer declarações confiáveis, porquanto emitidas sem injustas pressões externas, aí é que não se observa mínima disposição para acreditar em suas palavras. Essa falaciosa economia de credibilidades que o sistema de justiça oferece a um único e mesmo sujeito em distintos momentos constitui claro exemplo do que Lackey nomeou de injustiça epistêmica agencial (LACKEY, Jennifer. False confessions and testimonial injustice. In Journal of Criminal Law & Criminology, v. 110, p. 43-68, p. 60, 2020).
Foi exatamente o que ocorreu no caso deste recurso especial. O tribunal incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, seja por excesso de credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, seja a injustiça epistêmica cometida contra o réu, ao lhe conferir credibilidade justamente quando menos teve oportunidade de atuar como sujeito de direitos. A confissão informal — se é que existiu — não tem valor como prova, no sentido processual, configurando-se equivocada a postura de aceitar acriticamente que o investigado fala a verdade em cenário carente das mínimas condições para atuar livre e espontaneamente.
Neste sentido, é preciso reconhecer que, se se pretende aproveitar a palavra do policial, impõe-se a exigência de respaldo probatório que vá além do silêncio do investigado ou réu. O silêncio não descredibiliza o imputado e não autoriza que magistrados concedam automática presunção de veracidade às versões sustentadas por policiais. Seguindo este raciocínio, de que é necessário corroborar a isolada palavra do policial, impõe asserir que, tivessem os policiais gravado toda a abordagem — do início ao fim —, ao menos seria possível saber como a confissão se deu. A medida viabilizaria que o conteúdo objeto de registro pudesse vir a servir de elemento informativo, sendo mais do que oportuno repisar que não seria suficiente de per si para a condenação. Como não o fizeram e, ante a manifesta escassez probatória que — em violação ao art. 186 do CPP — se extraiu do silêncio do acusado inferências que a lei não autoriza extrair, impõe-se reconhecer que o standard probatório próprio do processo penal, para a condenação, não foi superado no presente caso. Enfim, tal como o tema do reconhecimento de pessoas pediu-nos reflexão acerca dos erros que o Judiciário cometeu no passado, o tema do silêncio também requer nossa atenta autocrítica.
Tendo isso em consideração, o interesse institucional na otimização dos testemunhos de policiais deveria servir de sério estímulo a que se retomasse o tema discutido no julgamento do HC n. 598.051/SP e se investisse na documentação, em vídeo e áudio, dos atos de investigação ou de abordagem policial, tal qual se passou a demandar em relação ao ingresso domiciliar, de sorte a tornar mais robusta, confiável e infensa a questionamentos éticos ou epistemológicos a prova produzida longe do contraditório judicial.
A escassez probatória do presente caso impõe provimento desse recurso especial, para absolver o recorrente da prática do crime descrito no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06.

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