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Lei de Abuso de Autoridade, cumprimento de busca e apreensão e compreensão do que é dia e noite

STJ, AgRg no RHC 168.319, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. p/ acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 5.12.2023: De acordo com o disposto no art. 5º, XI, da Constituição, “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. O art. 245, caput, do CPP, no mesmo sentido, estabelece que “As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta”. A interpretação desses dispositivos sempre gerou intensa celeuma no que concerne à definição dos conceitos de “dia” e de “noite” para fins de cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar (critérios cronológico, físico-astronômico e misto).
O advento do art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019, deu origem a uma nova corrente, no sentido de que, ao tipificar como crime de abuso de autoridade o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar entre 21h e 5h, o legislador haveria implicitamente regulamentado o art. 5º, XI, da Constituição, e o art. 245 do CPP, para definir como “dia” o período entre 5h e 21h. Todavia, o art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019 não definiu os conceitos de “dia” e de “noite” para fins de cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar. O que ocorreu foi apenas a criminalização de uma conduta que representa violação tão significativa da proteção constitucional do domicílio a ponto de justificar a incidência excepcional do direito penal contra aqueles que a praticarem. É dizer, o fato de que o cumprimento de mandado de busca domiciliar entre 21h e 5h foi criminalizado não significa que a realização da diligência em qualquer outro horário seja plenamente lícita e válida para todos os fins.
Assim, mesmo que realizada a diligência depois das 5h e antes das 21h, continua sendo ilegal e sujeito à sanção de nulidade cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar se for noite, embora não configure o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019. Vale mencionar, ainda, a reforçar essa interpretação, recente e importante decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Valencia Campos y otros v. Bolívia, julgado em 18 de outubro de 2022, em que o tema da temeridade do ingresso domiciliar em período noturno foi abordado com especial destaque. Em voto concorrente para a condenação do Estado boliviano por violação da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Juiz Rodrigo Mudrovitsch e a Juíza Nancy Hernández López pontuaram que, “as invasões policiais noturnas se afiguram incompatíveis com a Convenção e com os standards desta Corte, sendo admissíveis tão somente em situações absolutamente excepcionais e, acima de tudo, previstas de forma clara e taxativa na Constituição ou na Lei, e requerendo motivação reforçada que justifique as razões pelas quais não se pode realizar a diligência no horário diurno. Em outras palavras, não podem ser encaradas pelos Estados como procedimentos corriqueiros da atividade de persecução penal, à livre disposição dos operadores da justiça, e sim como instrumentos que configuram uma das mais graves intervenções na esfera de direitos dos indivíduos. Por essa razão, as invasões noturnas só são justificáveis mediante a mais rigorosa observância cumulativa dos ditames da legalidade e da proporcionalidade em todas as suas dimensões”.
No caso dos autos, as instâncias ordinárias rechaçaram a pretensão defensiva com base, essencialmente, em três argumentos: a) houve consentimento do acusado para que a busca se realizasse naquele horário; b) o boletim de ocorrência, que teria fé pública, atesta que a busca se iniciou às 6h; c) depois da entrada em vigor do art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019, passou a ser válido o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar entre 5h e 21h. 9. No que concerne ao primeiro fundamento, embora o Juízo singular haja mencionado que, segundo os policiais, o réu não ofereceu resistência e franqueou a entrada no domicílio, não há nenhuma prova do referido consentimento. Pelo contrário, o acusado refutou veementemente essa alegação, e os elementos dos autos demonstram que, na verdade, ele só teve contato com os policiais quando eles já haviam entrado no imóvel pelo portão da garagem e estavam na porta da sala de estar da residência, em grande número e fortemente armados.
Constata-se, ainda, que a esposa do acusado colocou as mãos para cima quando os policiais entraram na sala, a reforçar que estava acuada e não tinha a menor condição de impedir um ingresso que já havia ocorrido, sobretudo diante da apresentação de uma ordem judicial de busca, a qual inviabilizava qualquer resquício de possibilidade concreta de oposição. Da mesma forma, não se sustenta o argumento de que a busca se iniciou às 6h, por ser esse o horário constante no boletim de ocorrência, uma vez que tal informação é desmentida pelo horário indicado nas câmeras de segurança da residência e pelo laudo técnico sobre as referidas imagens, que apontam ter o ingresso no imóvel ocorrido por volta de 5h30. Ademais, ainda estava totalmente escuro no local àquela hora, tanto que os policiais tiveram que usar lanternas para realizar a diligência, de modo que nem pelo critério físico-astronômico, nem pelo critério cronológico a medida pode ser considerada válida.
Por fim, quanto ao último fundamento, conforme assentado nos itens anteriores, o art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019 não torna válido o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar em qualquer horário situado entre 5h e 21h. No caso, aliás, nenhum motivo havia para que não se aguardasse para iniciar o cumprimento da diligência.

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