STF, ADI 6.298, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 24.8.2023: O artigo 3º-D, caput, estabeleceu a seguinte regra de impedimento: “O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo”. Em primeiro lugar, observa-se que o texto, erroneamente, alude aos artigos 4º e 5º do Código de Processo Penal, que tratam de atribuições exclusivas da autoridade policial no inquérito. Deveras, o artigo 4º prevê, expressamente, que “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.” Por seu turno, o artigo 5º contém as regras de procedimento e os requisitos necessários para a regular instauração do inquérito policial.
Constata-se que a regra do impedimento teve por fundamento a presunção absoluta de parcialidade do juiz que houvesse atuado no inquérito para processar e julgar a ação penal dele oriunda. Parte-se da premissa de que os juízes que acompanham investigações tendem a produzir vieses prejudiciais ao exercício imparcial da jurisdição, especialmente na fase processual penal. As contribuições da Análise Econômica do Direito e das ciências comportamentais (behavioral sciences) à seara jurídica, mormente quanto aos possíveis vieses cognitivos gerados pela atuação do julgador, revelam que essa presunção absoluta conduz a generalizações inadequadas. A base das ciências comportamentais é o caráter empírico de seus argumentos. A existência de estudos empíricos segundo os quais seres humanos desenvolvem vieses em seus processos decisórios não autoriza a presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à acusação.
A Lei 13.964/2019 estabeleceu, assim, uma presunção legal absoluta de parcialidade do juiz que, no exclusivo exercício da função jurisdicional, tenha proferido decisões na fase do inquérito.
A articulação dos conceitos de “imparcialidade objetiva” ou “aparência de imparcialidade”, segundo os quais a lei deve evitar que uma causa seja julgada por magistrado de cuja imparcialidade se possa suspeitar, parte do pressuposto de que todos os indivíduos, em razão de suas próprias limitações, estão sujeitos a um viés de confirmação de suas decisões pretéritas. Consequentemente, segundo este entendimento, a lei deve considerar impedido de julgar um juiz que esteja comprometido com um conhecimento prévio dos fatos da investigação, para preservar “a aparência de imparcialidade”.
Esta ordem de considerações não está em consonância com os pressupostos epistemológicos de criação e funcionamento das normas jurídicas, da justiça e dos regramentos necessários à organização da sociedade humana. Se, de um lado, a limitação do conhecimento e da própria racionalidade humana é um dos temas clássicos das reflexões filosóficas, que encontrou uma de suas primeiras e mais inspiradas expressões na Alegoria da Caverna, de Platão, por outro lado, a racionalidade limitada e os condicionamentos das heurísticas individuais não nos conduzem a pressupor que os seres humanos são irracionais e destituídos de livre-arbítrio. Ao contrário, a previsão de regras de comportamento e de sanção para sua violação, que caracteriza todo o sistema jurídico, erige-se sobre o pressuposto de que os indivíduos se comportam e decidem, em regra, como seres dotados de livre arbítrio e de racionalidade.
A presunção absoluta do viés de confirmação de decisões pretéritas, que inspirou o artigo 3º-D da Lei 13.964/2019, nutre-se de convicções opostas, admitindo, como regra, a irracionalidade do juiz e sua incapacidade para tomar decisões fundadas em dados e elementos objetivos de convicção, deixando-se guiar por heurísticas e vieses inconscientes de confirmação, sem quaisquer fundamentos.
Diante da manifesta irrazoabilidade da norma de impedimento estabelecida no artigo 3º-D do Código de Processo Penal, incluída pela Lei 13.964/2019, deve ser declarada sua inconstitucionalidade material.
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