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Ilegalidade de ingresso em domicílio pela polícia com base no "sexto sentido" e outras considerações sobre o assunto

STF, Segundo AgRg no RHC 222.278, Rel. Min. Edson Fachin, decisão monocrática de 19.04.2023: Como se nota das decisões proferidas pelas instâncias antecedentes, o ingresso domiciliar fora motivado em síntese: a) por denúncias anônimas que apontavam o local como ponto de drogas; b) pela existência de um carro coberto encoberto estacionado em frente ao domicílio, classificado como “suspeito” e c) pela ação desenvolvida pelo acusado durante a diligência policial – “saiu em disparada assim que avistou a viatura, procurando fugir pelos fundos do imóvel” – atitude compreendida como suspeita. Contudo, as razões apontadas para o ingresso na casa do paciente, a meu juízo, não atendem à exigência expressa na legislação quanto à demonstração de hipótese de flagrante delito (art. 5°, XI, da Constituição Federal e art. 302 do CPP); não se conformam aos parâmetros da consolidada jurisprudência desta Suprema Corte (Tema 280); tampouco atendem à exigência de adequada motivação dos atos judiciais (art. 5°, LXI, da CR/88).
Partindo da noção de inviolabilidade domiciliar, rememore-se a redação do art. 5°, XI, da Constituição Federal: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. A mitigação ao direito fundamental à inviolabilidade domiciliar é admitida, no que interessa ao caso dos autos, em hipótese de flagrante delito, espécie de prisão que encontra definição no Código de Processo Penal (art. 302).
Devem haver fundadas razões que indiquem a ocorrência de situação de flagrante delito e a constatação da fundada razão de flagrante delito deve ser aferida antes do ingresso ao domicílio, não convalidando a prova eventual encontro posterior de instrumento ou prática criminosa.
E nesse aspecto enfatizo que no âmbito dos Tribunais muito se tem advertido quanto à necessidade de apontar a “fundada razão” para justificar o ingresso domiciliar, mas por vezes olvida-se que“fundada razão” não é um fim em si mesmo. Não é motivação autônoma ou desconexa, pois está essencialmente imbricada a outro elemento igualmente importante, que é o flagrante delito. Assim, indispensável a demonstração de “fundadas razões”, não de “atitude suspeita”, ou fundadas razões quanto “à necessidade/pertinência da incursão domiciliar”, mas sim fundadas razões da ocorrência de flagrante delito.
Quanto ao ponto, importante estabelecer que o Código de Processo Penal, em seu art. 302, prevê três hipóteses para a configuração do flagrante delito. Segundo classificação doutrinária corrente, tem-se: a) flagrante próprio – o agente “está cometendo a infração penal” ou “acaba de cometê-la”(incisos I e II); b) flagrante impróprio – agente é“perseguido logo após (…) em situação que faça presumir ser autor da infração” (inciso III); e c) flagrante ficto – agente é “encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração” (inciso IV).
A verificação material do crime figura, portanto, como verdadeiro critério legitimador à incursão domiciliar em caso de flagrante delito. Consoante a essa diretriz, mencione-se, a título meramente exemplificativo, o que pode enquadrar-se como causa ensejadora do flagrante delito e, consequentemente, apta a ensejar a incursão domiciliar: o odor característico de droga e/ou outro material ilícito percebido ainda do lado de fora da residência (verificação material pelo olfato); o ruído de tiros, conversas, gritos, discussões que revelem a ocorrência de crime (verificação material pela audição); a visualização de cena, material, instrumento que indiquem ou constituam objeto ou proveito de crime (verificação material pela visão).
Esses elementos materiais da ocorrência de situação de flagrante podem ser constatados pela própria autoridade policial que decide ingressar no domicílio ou por terceiros, como testemunhas oculares, vítimas, que reportem esses fatos à autoridade policial, desde que esses meios de prova venham, devidamente, documentados e individualizados nos autos.
Em contrapartida, o chamado “sexto sentido”, por derivar de construção meramente subjetiva e empiricamente não demonstrável, não se amolda aos contornos de flagrância indicados pelo Código de Processo Penal e por isso não se presta a autorizar o ingresso em domicílio. Nessa categoria também se situa a “atitude suspeita”, que por denotar convicção íntima do agente que acompanha a diligência, não pode ser compreendida como motivação suficiente à caracterização do flagrante delito. Não se está a dizer que desconfianças, intuições, suspeitas, muitas vezes decorrentes da experiência e recorrência de atividades vivenciadas no dia a dia policial devam ser simplesmente ignoradas. Tais circunstâncias podem justificar o início de atos de investigação, que em conjunto com outros elementos, devidamente justificados, poderão ensejar diligências dirigidas especificamente contra o investigado, até mesmo prestando-se a corroborar requerimentos de busca domiciliar formulado ao Juízo competente.
Portanto, os fundamentos apresentados pela autoridade policial para o ingresso na residência não atendem ao parâmetro da visibilidade material de hipótese caracterizadora de flagrante delito, nem de comprovação material – por elementos – de situação indicativa de flagrante delito e por isso não se conforma ao requisito da “fundada razão” a que se reporta o tema 280, decidido por esta Suprema Corte. Acrescento que a exigência da verificação material de hipótese caracterizadora de flagrante delito, conceito extraído do própria legislação infraconstitucional que rege a matéria, a meu sentir, conformase adequadamente à proteção constitucional conferida no art. art. 5°, XI da CF, sem que se confira permeabilidade demasiada à exceção contida no referido dispositivo constitucional. Por fim, cumpre ressaltar que se de fato, havia a convicção pelos policiais de que o local funcionava como ponto permanente de tráfico – “Havia denúncia anônima apontando que o imóvel seria utilizado por integrantes de uma organização criminosa para a guarda de entorpecentes e armamento” -, nada denotando, portanto, que seria abruptamente desconstituído, o apropriado era o regular transcurso processual penal, à luz do regramento previsto no art. 240 do CPP e seguintes, não se justificando, por isso, a mitigação açodada a uma garantia constitucional do indivíduo.
Ante o exposto, com base no art. 192 do RISTF, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem de ofício para o fim de declarar a nulidade da incursão domiciliar sem mandado judicial e dos demais atos processuais que dela advieram, bem como absolver o recorrente da imputação.

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