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Dropsy testimony e busca pessoal

STJ, HC 877.943, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 3ª Seção, j. 18.4.2024, trecho de voto do Min. Schietti: Observou-se nos EUA, após o julgamento do paradigmático Caso Mapp vs. Ohio (1961) – responsável por estender a aplicação da regra de exclusão de provas ilícitas às Cortes Estaduais -, em vez de adequar sua conduta para respeitar as regras sobre busca e apreensão, a polícia passou a burlar a proibição por meio da alteração das narrativas sobre as prisões. O que antes era uma justificativa pouco comum começou a ser frequente nos depoimentos policiais: ao avistar a guarnição, o indivíduo supostamente haveria corrido e dispensado uma sacola com drogas, circunstâncias que tornavam a apreensão das substâncias válida.
Em um estudo empírico que analisou quase 4 mil autos de prisão em flagrante no período de seis meses antes e seis meses depois do julgamento do Caso Mapp, constatou-se um aumento de até 85,5% desse tipo de descrição da ocorrência, o que ficou conhecido como dropsy testimony, em razão do verbo to drop (soltar/largar).
Como observou Irving Younger, juiz da Suprema Corte de Nova York, no Caso People vs. McMurty, “(…) então a polícia fez a grande descoberta de que, se o réu larga as drogas no chão, e depois o policial o prende, a busca é considerada razoável e a prova é admissível. Passe algumas horas no Tribunal Criminal da Cidade de Nova York nos dias de hoje, e você ouvirá caso após caso em que um policial testemunha que o réu largou as drogas no chão e depois o policial o prendeu. Geralmente, a própria linguagem do testemunho é idêntica de um caso para outro. Isso agora é conhecido entre advogados de defesa e promotores como dropsy testimony“.
O dropsy testimony, naquele país, foi visto como parte de um fenômeno mais amplo, conhecido como “testilying”, mistura do verbo testify (testemunhar) com lying (mentindo), prática considerada muito mais comum do que se imaginava e associada à conduta de distorcer os fatos em juízo para tentar legitimar uma ação policial ilegal, isto é, “fabricar” a justa causa para uma medida invasiva.
Segundo o relatório de uma comissão instaurada para apurar irregularidades na polícia de Nova York, esse tipo de falsificação era “provavelmente a forma mais comum de corrupção policial enfrentada pelo sistema de justiça criminal, especialmente no contexto de prisões por posse de drogas e armas”, prática que é “tão frequente em certas unidades policiais que gerou um termo próprio: testilying”.
O fenômeno não é estranho ao cenário brasileiro. Entre nós, é mais conhecido por “arredondar a ocorrência”, expressão consolidada no jargão policial e que consta até mesmo em dicionários de linguagem castrense, com o significado de “tornar transparente uma situação embaraçosa” (MINANI, Ademir Antonio. Dicionário da Linguagem Castrense, São Paulo: Clube de Leitores, 2018, p. 34).
É o que frequentemente vemos, por exemplo, nos casos em que se alega de maneira absolutamente inverossímil que o réu, depois de abordado e revistado em via pública, sem nenhum objeto ilícito, milagrosamente convidou o policial para ir até a sua casa apreender quilos de drogas que lhe custarão anos na prisão.
Volta à tona, nesse ponto, a discussão sobre o valor probatório do testemunho policial, meio de prova ainda admitido e visto como relevante por esta Corte, mas que gradativamente vem sofrendo importantes relativizações, sobretudo em contextos nos quais a narrativa dos agentes se mostra claramente inverossímil. Menciono, exemplificativamente, os casos de alegado consentimento do morador, as hipóteses em que se apontam supostas confissões ou delações informais não ratificadas nas oitivas formais, afirmações de que foi sentido cheiro de drogas de fora de uma casa em cenários nos quais aquilo era dificilmente factível, entre outros.
Esses exemplos reforçam a cada vez mais premente necessidade de corroboração do depoimento policial por outros elementos independentes, como a filmagem por meio de câmeras corporais, na linha do que já externamos em outros julgamentos desta Corte. Infelizmente, porém, ainda não chegamos ao desejado cenário em que todos os policiais de todas as polícias do Brasil estejam equipados com bodycams em tempo integral, o que não apenas ajudaria a evitar desvios de conduta, mas também protegeria os bons policiais de acusações injustas de abuso, com qualificação da prova produzida em todos os casos.
Enquanto não atingimos esse patamar, todavia, entendo que, diante do risco de distorção dos fatos para justificar a medida, devemos, no mínimo, exigir que se exerça um “especial escrutínio” sobre o depoimento policial, na linha do que propôs o Ministro Gilmar Mendes por ocasião do julgamento do RE n. 603.616.
Essa atenção mais detida à veracidade do depoimento policial também foi sugerida por Irving Younger no referido caso People v. McMurty, depois de alertar sobre o fenômeno dropsy, como uma de quatro diretrizes para minimizar o problema: a) o depoimento do policial deve ser analisado com especial cautela; b) se o testemunho do policial parecer inverossímil, deverá ser rejeitado; c) se houver contradição no depoimento dos policiais ou corroboração da versão do réu, as provas devem ser excluídas; d) o ônus da prova sobre a legalidade da busca deve ser atribuído ao Estado.
Trata-se, portanto, de abandonar a cômoda e antiga prática de atribuir caráter quase inquestionável a depoimentos prestados por testemunhas policiais, como se fossem absolutamente imunes à possibilidade de desviar-se da verdade; do contrário, deve-se submetê-los a cuidadosa análise de coerência – interna e externa –, verossimilhança e consonância com as demais provas dos autos.

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