Corte IDH, Caso Valencia Campos e outros vs. Bolívia. Exceção preliminar, mérito, reparações e custas. Voto conjunto dos juízes Nancy Hernández Lopez e Rodrigo Mudrovitsch, § 58 e seguintes: Outra questão que deve ser avaliada é a possibilidade de exceção à proibição de ingresso domiciliar quando há “consentimento do residente”, presente em algumas legislações nacionais. Esta hipótese merece mais atenção, porque é evidente que desconhece a relação desigual que se estabelece entre o cidadão e o agente público, especialmente nesta situação em que o agente pretende tomar uma medida para restringir a garantia da inviolabilidade do domicílio.
De fato, a desconfiança no consentimento do residente é mencionada pela Corte Suprema dos Estados Unidos no Caso Amos vs. EUA (1921), na qual se considerou que o consentimento para entrar na residência sem uma ordem judicial não é uma renúncia ao direito constitucional contra o ingresso e a apreensão arbitrários.
Neste sentido, o consentimento não deve ser considerado de forma arbitrária para permitir o ingresso domiciliar quando não existe uma suspeita razoável de que a situação é flagrante, pelo mero fato de que o cidadão, dentro da relação de desigualdade que se estabelece com o agente público com autoridade e poder, tenha permitido os agentes entrar no domicílio. Vale a pena reforçar que o ingresso sem ordem judicial somente é possível quando existe uma constatação prévia e fundada de flagrância, com elementos objetivos e concretos que, dentro de uma análise de proporcionalidade, permitem a ação.
Não é possível excluir este requisito alegando que existiu o consentimento dos residentes. O fato é que esse consentimento, para ser juridicamente válido, deve ser voluntário e livre de coações. É evidente, portanto, que não se permite nenhuma coação por parte da autoridade policial para que o residente permita a entrada em seu domicílio. Ainda que não se negue a possibilidade de prever expressamente esta exceção, inclusive com as salvaguardas apresentadas, o consentimento, assim como a flagrância, também requer uma cuidadosa análise judicial posterior. Neste caso, o juiz deve comprovar primeiro com quais elementos contavam os agentes de segurança pública para poder adotar esta medida e, depois, que provas há de que o residente consentiu livre e espontaneamente a entrada. Em caso de dúvida, p. ex., se as versões dos agentes e dos residentes são diferentes, deve prevalecer a versão da pessoa cujo direito foi violado: o cidadão.
Isso se deve a que o Estado tem a carga de provar que o consentimento foi realmente livre e voluntário. Para garantir a inviolabilidade da medida, o Código de Procedimento Penal francês, p. ex., exige que o consentimento seja expresso, mediante uma declaração manuscrita do interessado. Não obstante, ainda que exista uma declaração expressa de consentimento, é necessário que o Estado prove que este se deu livremente, sem que haja indícios de que se obteve de forma coercitiva. Este requisito é fundamental para evitar arbitrariedades e abusos de autoridade no momento de realizar um ingresso domiciliar.
Ademais, é fundamental analisar as particularidades subjetivas do indivíduo que expressa seu consentimento, como a idade, o nível de educação, a capacidade intelectual, entre outras hipóteses que poderiam eventualmente interferir em sua livre aquiescência. Por último, o livre consentimento não pode estar condicionado a alguma circunstância, periférica, como ocorre quando a autoridade oferece “promessas” para que o particular autorize o ingresso domiciliar.
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