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Possibilidade de o juiz condenar quando o MP pede a absolvição

STJ, REsp 2.022.413, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. p/ acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 14.02.2023: Conforme dispõe o art. 385 do Código de Processo Penal, é possível que o juiz condene o réu ainda que o Ministério Público peça a absolvição do acusado em alegações finais. Esse dispositivo legal está em consonância com o sistema acusatório adotado no Brasil e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei n. 13.964/2019, que introduziu o art. 3º-A no Código de Processo Penal.
O sistema processual penal brasileiro – em contraposição ao antigo modelo inquisitivo – é caracterizado, a partir da Constituição Federal de 1988, como acusatório, e não se confunde com o adversarial system, de matriz anglo-saxônica. É preciso louvar os benefícios que decorrem da adoção do processo com estrutura acusatória – grande conquista de nosso sistema pós-Constituição de 1988 e reforçado pelo novel art. 3º-A do CPP – sem, todavia, cair no equívoco de desconsiderar que o processo penal, concebido e mantido acima de tudo para proteger o investigado/réu contra eventuais abusos do Estado em sua atividade persecutória e punitiva, também tutela outros interesses, igualmente legítimos, como o da proteção da vítima e, mediatamente, da sociedade em geral. Ao Estado tanto interessa punir os culpados quanto proteger os inocentes, o que faz por meio de uma jurisdição assentada em valores indissociáveis, ainda que não absolutos, tais quais a verdade e a justiça.
Não obstante a proclamada adoção no Brasil de um processo com estrutura acusatória, a praxe judiciária tem agasalhado diversas situações em que se realizam atividades judiciais com inclinação inquisitorial. Em verdade, como bem observam Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, “mais do que de sistema inquisitorial ou de sistema acusatório, com referência à legislação processual penal moderna, é mais usual falar de modelos com tendência acusatória ou de formato inquisitorial” (DALIA, Andrea; FERRAIOLI, Marzia. Manuale di Diritto Processual Penale. 5 ed. Milão: 2003, p. 27, trad. livre).
O Ministério Público, instituição a que o Constituinte de 1988 incumbiu, privativamente, de promover a ação penal pública (art. 129, I, da Constituição Federal), tem o dever de deduzir, presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, a pretensão punitiva estatal, compromissado com a descoberta da verdade e a realização da justiça. Ao contrário de outros sistemas – em que o Ministério Público dispõe da ação penal por critérios de discricionariedade –, no processo penal brasileiro o Promotor de Justiça não pode abrir mão do dever de conduzir a actio penalis até seu desfecho, quer para a realização da pretensão punitiva, quer para, se for o caso, postular a absolvição do acusado, hipótese que não obriga o juiz natural da causa, consoante disposto no art. 385 do Código de Processo Penal, a atender ao pleito ministerial.
Deveras, o art. 385 do Código de Processo Penal prevê que, quando o Ministério Público pede a absolvição do acusado, ainda assim o juiz está autorizado a condená-lo, dada, também aqui, sob a ótica do Poder Judiciário, a soberania do ato de julgar.
Quando o Parquet pede a absolvição de um réu, não há, ineludivelmente, abandono ou disponibilidade da ação (Art. 42 do CPP), como faz o promotor norte-americano, que simplesmente retira a acusação (decision on prosecution motion to withdraw counts) e vincula o posicionamento do juiz. No sistema pátrio, é vedada similar iniciativa do órgão de acusação, em face do dever jurídico de promover a ação penal e de conduzi-la até o seu desfecho, mesmo que, eventualmente, possa o agente ministerial posicionar-se de maneira diferente – ou mesmo oposta – à do colega que, na denúncia, postulara a condenação do imputado. 3.6. No tocante à natureza dos interesses postos em conflito no Processo Penal, cabe reportar à oportuna e avalizada lição de Giovanni Leoni (Diritto Procesuale Penale. 7. ed., Napoli: Jovene, 1968, p. 497 ss, trad. livre), que assere: “No Processo Penal se estabelecem duas situações distintas: uma imanente de conflito entre o direito punitivo do estado e o direito de liberdade do agente; e, outra, contingente, de relação entre o Ministério Público e o acusado, que pode reproduzir a primeira situação ou divorciar-se integralmente dela”. E acrescenta o eminente professor italiano: “Na jurisdição criminal não há propriamente uma demanda do Ministério Público contra uma demanda do réu, mas uma posição estática de interesse punitivo que está atrás do Ministério Público. E uma posição estática de interesse à liberdade que fica às costas do agente”.
As posições contingencialmente adotadas pelos representantes do Ministério Público no curso de um processo não eliminam o conflito que está imanente, permanente, na persecução penal, que é o conflito entre o interesse punitivo do Estado, representado pelo Parquet, Estado-acusador, e o interesse de proteção à liberdade do indivíduo acusado, ambos sob a responsabilidade do órgão incumbido da soberana função de julgar, por meio de quem, sopesadas as alegações e as provas produzidas sob o contraditório judicial, o Direito se expressa concretamente.
Portanto, mesmo que o órgão ministerial, em alegações finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente a pretensão acusatória formulada no início da persecução penal – pautada pelos princípios da obrigatoriedade, da indisponibilidade e pelo caráter publicista do processo –, a qual é julgada pelo Estado-juiz, mediante seu soberano poder de dizer o direito (juris dicere).
Tal como ocorre com os poderes instrutórios residuais do juiz no sistema acusatório, que se justificam excepcionalmente à vista do risco de se relegar a busca da verdade processual apenas às partes – as quais estão em situação de engajamento e têm interesse em ganhar a causa, e não necessariamente em demonstrar o que de fato aconteceu –, pela mesma razão se explica a possibilidade – também excepcional – de que o juiz condene o réu mesmo que o Ministério Público peça a absolvição dele.
O princípio da correlação vincula o julgador apenas aos fatos narrados na denúncia – aos quais ele pode, inclusive, atribuir qualificação jurídica diversa (art. 383 do CPP) –, mas não o vincula aos fundamentos jurídicos invocados pelas partes em alegações finais para sustentar seus pedidos. Dessa forma, uma vez veiculada a acusação por meio da denúncia e alterado o estado natural de inércia da jurisdição – inafastável do Poder Judiciário nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição –, o processo segue por impulso oficial e o juiz tem o dever – pautado pelo sistema da persuasão racional – de analisar, motivadamente, o mérito da causa submetida à sua apreciação, à vista da hipótese acusatória contida na denúncia, sem que lhe seja imposto o papel de mero homologador do que lhe foi proposto pelo Parquet.
A submissão do magistrado à manifestação final do Ministério Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório, implicaria, em verdade, subvertê-lo, transmutando o órgão acusador em julgador e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade.
Com efeito, é importante não confundir a desistência da ação – que é expressamente vedada ao Ministério Público pela previsão contida no art. 42 do CPP e que levaria, se permitida, à extinção do processo sem resolução do mérito e sem a formação de coisa julgada material –, com a necessária vinculação do julgador aos fundamentos apresentados por uma das partes em alegações finais, cujo acolhimento leva à extinção com resolução do mérito da causa e à formação de coisa julgada material insuperável, porquanto proibida a revisão criminal pro societate em nosso ordenamento.
É de se notar, ainda, o grave déficit de sindicabilidade dos atos do membro do Ministério Público que o entendimento ora refutado acarreta. Isso porque eventual erro – a que todos estão sujeitos, falíveis que são os seres humanos – ou até mesmo algum comprometimento ético do representante do Parquet não seria passível de nenhum controle, diante da ausência de interesse em recorrer da decisão judicial que acolhe o pedido absolutório ou extintivo da punibilidade, cenário afrontoso aos princípios fundantes de qualquer Estado Democrático de Direito.
É dizer, nem o juiz, nem o Tribunal, tampouco a instância revisora do Ministério Público poderiam controlar o ato viciado, porquanto, diferentemente do que ocorre na sistemática do arquivamento do inquérito (art. 28 do CPP), não há previsão legal para remeter os autos ao órgão superior do Parquet nessa hipótese. Ainda que se aplicasse o referido dispositivo por analogia – o que mitigaria a falta de controle sobre o ato –, tal solução, em caso de insistência no pedido absolutório e vinculação do julgador, não resolveria o problema de afronta à independência funcional e à soberania do Poder Judiciário para dizer o direito, função que lhe é ínsita.
Ao atribuir privativamente ao Ministério Público o encargo de promover a ação penal pública, o Constituinte ressalvou no art. 129, I, que isso deveria ser exercido “na forma da lei”, de modo a resguardar ao legislador ordinário alguma margem de conformação constitucional para tratar da matéria, dentro da qual se enquadra a disposição contida no art. 385 do CPP. Ou seja, mesmo sujeita a algumas críticas doutrinárias legítimas, a referida previsão normativa não chega ao ponto de poder ser considerada incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, tampouco com o sistema acusatório adotado no país.
É necessário fazer, entretanto, uma ponderação, à luz das pertinentes palavras do Ministro Roberto Barroso, no julgamento da Ap n. 976/PE, de que “[t]al norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal”. Vale dizer, uma vez formulado pedido de absolvição pelo dominus litis, caberá ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fáticos e jurídicos pelos quais entende ser cabível a condenação e refutar não apenas os fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equívoco da manifestação ministerial. Isso porque, tal como ocorre com os seus poderes instrutórios, a faculdade de o julgador condenar o acusado em contrariedade ao pedido de absolvição do Parquet também só pode ser exercida de forma excepcional, devidamente fundamentada à luz das circunstâncias do caso concreto.
Na espécie, o Tribunal de origem assentou suas conclusões sobre o argumento de haver provas suficientes nos autos para concretizar a tese da condenação do réu pelo crime de concussão. É pertinente lembrar, sobre o tema, que a prática do núcleo do tipo penal (“exigir”) pode se configurar em razão de uma intimidação decorrente do temor do indivíduo diante de uma autoridade, a despeito da ausência de violência ou ameaça expressas por parte do funcionário público. Para alterar a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo e acolher a tese defensiva de “não configuração da prática do verbo do tipo ‘exigir’”, seria indispensável nova incursão vertical na seara fático-probatória, providência vedada em recurso especial, nos termos da Súmula n. 7 do STJ.
Não se admite, no ordenamento jurídico pátrio, a prolação de um decreto condenatório fundamentado, exclusivamente, em elementos informativos colhidos durante o inquérito policial, no qual inexiste o devido processo legal (com seus consectários do contraditório e da ampla defesa). No entanto, é possível que se utilize deles, desde que sejam repetidos em juízo ou corroborados por provas produzidas durante a instrução processual. No caso, a leitura do acórdão evidencia que, além dos “prints de whatsapp” – juntados pela própria defesa técnica do acusado no PIC – e dos comprovantes de depósito, também foram consideradas outras provas judicializadas em desfavor do réu, principalmente a vasta prova oral colhida, transcrita e analisada no acórdão.

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