Corte IDH, Caso Bayarri vs. Argentina. Exceção preliminar, mérito, reparações e custas. Sentença de 30.10.2008. Voto do juiz Sergio García Ramírez, § 1º e seguintes: O exame e a sentença do Caso Bayarri promovem diversas questões relevantes sobre a tutela dos direitos humanos no contexto do procedimento penal, que constitui um cenário complexo e perigoso para o encontro entre os poderes do Estado e os direitos do indivíduo. Entre essas questões figura a privação cautelar da liberdade do processado, tema frequentemente destacado nos pronunciamentos da Corte, que já produziu um “corpo de doutrina” sobre esta matéria que pode e deve projetar-se – a título de interpretação formal da Convenção Americana – na norma e decisões internas.
A prisão preventiva, que precede a punitiva na história da privação da liberdade vinculada à sanção atual ou futura dos delitos, tropeça em obstáculos éticos e lógicos de grande magnitude. Basta recordar – evocando o clássico Beccaria – que constitui uma pena antecipada à proclamação oficial da responsabilidade penal de quem a sofre.
Dificilmente se poderia sustentar que a prisão preventiva é uma medida “justa”, ainda que seja praticado sob o amparo da justiça. Se é injusto castigar para saber se se pode castigar, há que se buscar novos argumentos para sustentar a legitimidade de semelhante medida. Em outros termos, será preciso estabelecer que a privação cautelar da liberdade é “necessária” desde a perspectiva da justiça – no caso concreto, por certo – e que a sua previsão decorre de razões e considerações que facultam o Estado restringir direitos dos indivíduos: não há direito absoluto; todo direito tem seu limite na fronteira dos direitos alheios, o bem comum, o interesse geral, a segurança de todos, sempre no contexto – estrito e exigente – da sociedade democrática. Cabe formular as mesmas considerações, por certo, a propósito de outra vertente privativa da liberdade: a prisão punitiva, medida penal em sentido estrito, que devia ser reduzida à sua expressão indispensável.
A prisão preventiva integra os meios de que se vale o Estado para assegurar – cautelar ou pré-cautelarmente – a boa marcha da justiça e o eficaz cumprimento das decisões jurisdicionais. Nesse sentido, a preventiva obedece os mesmos fatores e deve atender as mesmas regras que governam outros expedientes cautelares. Tudo isso traz consigo certa antecipação no julgamento, com o propósito de salvar o julgamento em si. No entanto, a preventiva é a mais intensa e devastadora dessas medidas, incomparavelmente mais severa que a vigilância pela autoridade, o asseguramento de bens, a proibição de realizar determinadas operações ou atividades, a limitação na liberdade de trânsito etc. Na verdade, todas as medidas cautelares geram danos dificilmente reparáveis, ainda que compensáveis; a preventiva causa, por sua vez, um dano absolutamente irreparável, como é a perda do tempo de vida, com tudo o que isso significa: daí a necessidade de analisá-la e adotá-la com infinito cuidado.
Como justificar a privação de liberdade de quem é presumidamente inocente e deve ser tratado em termos tão garantistes dessa presunção que lhe favorece? Como confinar o inocente, deixá-lo incomunicável, restringir o exercício de outros direitos inevitavelmente afetados, expô-lo à sociedade como um presumido – ou seguro – culpável?
Não obstante os argumentos usados para a redução racional da privação cautelar da liberdade, em diversos lugares tem se observado o emprego crescente, até exagerado, desde meio supostamente cautelar. Esta expansão resulta do que chamo “desesperação e exasperação” da sociedade – a opinião pública ou as correntes que a informam e a administram – frente ao auge da delinquência. O temor que esta impõe à sociedade, ante a impotência dos instrumentos formais e informais do controle social – ineficácia, insuficiência, indiferença, colusão -, sugere ao legislador uma via rápida e eficaz, ainda que questionável e regularmente ineficaz: impor a prisão preventiva num crescente número de hipóteses, quase sempre em condições que igualam ou são piores as que regem – constantemente denunciadas nas resoluções da Corte Interamericana – num elevado número de prisões, que não fazem honra à sua designação como meios de readaptação, reabilitação, reeducação, reinserção etc.
A doutrina da Corte Interamericana em matéria de prisão preventiva se sustenta em diversos princípios que convém recordar agora e nos quais é preciso insistir para conter e reduzir a tendência a extremar os casos de privação cautelar da liberdade. É óbvio que qualquer privação de liberdade – detenção, prisão preventiva, internamento cautelar, educativo ou terapêutico, sanção administrativa ou penal – deve estar prevista na lei, com clareza, moderação e precisão, como corresponde ao Estado de Direito.
A grande regra de intervenção penal mínima – que possui implicações especiais na matéria que agora examino – conduz a reduzir os casos de privação cautelar da liberdade a sua igualmente mínima expressão: não o mais, mas sim o menos; não sistema ou regra, mas sim exceção. Daqui derivaria uma deliberada reelaboração legislativa que reduza o espaço atualmente ocupado pela prisão preventiva. Este desígnio indica que a decisão de prisão preventiva entre em cena quando isso resulte verdadeiramente necessário.
Obviamente, a condição de necessidade ou “indispensabilidade” não fica ao capricho da autoridade ou do clamor popular, que poderiam qualificar como necessário ou indispensável o que na realidade é prescindível ou substituível. Para cumprir os deveres de respeito e garantia dos direitos humanos, o Estado deve organizar o aparato público com tal intenção, lançando mão de todos os meios que estejam ao seu alcance com a mais ampla – não a mais reticente ou modesta – aplicação dos recursos disponíveis. Daí que o Estado deva empregar com a frequência possível – que é muita – substitutivos carcerários da privação de liberdade. É fácil? É barato? Talvez não. Mas tampouco é eficaz, nem econômica a prisão preventiva, além de estar fundada num delicado compromisso – uma complexa transação – entre a justiça e a sociedade, que operam em incerto equilíbrio.
A prisão preventiva, reitero, é medida cautelar: serve aos fins imediatos do processo; atende às necessidades deste; permite que flua e conclua em termos razoáveis e que a sentença seja cumprida, não burlada. Ainda que traga consigo, inevitavelmente, força aflitiva, não deve adquirir formalmente essa qualidade: não deve constituir pena ou medida penal que imponha a um indivíduo a perda ou o menoscabo de um direito fundamental para atender fins alheios do processo. Obedece, então, a necessidades processuais imperiosas e imediatas, a saber: a efetiva sujeição do acusado ao processo e a boa marcha deste. Obviamente, ambos fatores da privação de liberdade devem ser suficientemente estabelecidos: não basta a alegação do acusador ou a impressão rápida do julgador. É preciso provar o risco real de subtração do acusado à justiça e o perigo, efetivo, para a marcha regular do processo.
Ficam excluídos outros objetivos, que podem ser plausíveis em si mesmos e obrigar o Estado, mas que não figuram na natureza estrita da medida processual cautelar: tais são, por exemplo, a prevenção geral de crimes ou as expectativas sociais.
É inadmissível que a preventiva se prolongue quando tiveram cessado as condições para impô-la ou quando tenha transcorrido o tempo necessário para que uma investigação razoável, conduzida com seriedade e eficácia, prove a existência do crime e permita, portanto, concluir o processo e ditar a sentença.