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Consequências do tráfico privilegiado

STJ, HC 596.603, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 08.09.2020: O HC coletivo norteia-se por diretrizes como a existência de relações sociais massificadas e burocratizadas, cujos problemas exigem soluções a partir de remédios processuais coletivos, especialmente para coibir ou prevenir lesões a direitos de grupos vulneráveis; o fortalecimento da abordagem coletiva, em atendimento a maior isonomia às partes em litígio e em prestígio à celeridade processual, mitiga as dificuldades estruturas do acesso das coletividades ao Poder Judiciário.
A moldura fática trazida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo – mais de mil presos, que, a despeito da reconhecida prática de crime de tráfico privilegiado, cumprem pena de um ano e oito meses, em regime fechado, com respaldo exclusivo no ultrapassado entendimento de que a conduta caracteriza crime assemelhado a hediondo – permite solução coletiva, por reproduzirem a mesma situação fático-jurídica.
Há anos são perceptíveis, em um segmento da jurisdição criminal, os reflexos de uma postura judicial que, sob o afirmado escudo da garantia da independência e da liberdade de julgar, reproduz política estatal que se poderia, não sem exagero, qualificar como desumana, desigual, seletiva e preconceituosa. Tal orientação, que se forjou ao longo das últimas décadas, parte da premissa equivocada de que não há outro caminho, para o autor de qualquer das modalidades do crime de tráfico – nomeadamente daquele considerado pelo legislador como de menor gravidade –, que não o seu encarceramento.
Segundo a interpretação, consolidada e antiga do Supremo Tribunal Federal (HC 111.840), conforme à Constituição da República, não é considerado hediondo o delito de tráfico de drogas, na modalidade prevista no art. 33, § 4º da Lei n. 11.343/2006 (caracterizada pela quantidade de drogas apreendida não elevada e por ser o agente primário, sem antecedentes penais e sem envolvimento com atividade ou organização criminosa). Em decorrência dessa interpretação, que sobreleva os princípios da presunção de inocência e da individualização da pena, a natureza não hedionda do crime em exame desautoriza prisão preventiva sem a análise concreta dos requisitos do art. 312 do CPP (HC n. 104.339, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Gilmar Mendes), afasta a proibição, prevista art. 44 da Lei 11.343/2006, de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos (HC n. 97.256, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Ayres Britto), e impõe, portanto, tratamento penal com contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa (HC n. 118.533, Tribunal Pleno, Rel. Ministra Cármen Lúcia).
Esses julgados, por força do art. 927, III e V, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal em razão da norma de abertura positivada no art. 3º do CPP, devem ser observados por juízes e tribunais do país, em nome da segurança jurídica, da estabilidade das decisões do Poder Judiciário, da coerência sistêmica e da igualdade de tratamento dos jurisdicionados, que não podem ficar à mercê de interpretações divergentes, sobre questões de cunho eminentemente jurídico, das que lhes conferiram os órgãos de cúpula do Poder Judiciário, incumbidos, por comando constitucional, da função de uniformizar a interpretação e a aplicação da Constituição da República e das leis federais (arts. 102, III e 105, III).
A partir da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, que conferiu nova redação ao art. 112, § 5º, da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/1984), “Não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006”. Deveras, não condiz com a racionalidade punitiva, ínsita a um Estado Democrático de Direito, que a todo e qualquer autor de tráfico de drogas se imponha o cumprimento de sua pena em estabelecimento penal, em regime fechado, e sem direito a qualquer alternativa punitiva, mesmo se todas as circunstâncias judiciais e legais sejam reconhecidas a seu favor (quantidade pequena de droga, primariedade e bons antecedentes do agente, além de não demonstração de seu envolvimento em atividade ou organização criminosa).
E não há de ser esse o proceder de agentes do Estado a quem se confia o exercício da nobre função de dizer o Direito, algo que, no âmbito da jurisdição criminal – que expressa o poder punitivo estatal – reclama dose ainda maior de serenidade e ausência de preconceitos.
A individualização da sanção penal (alçada a direito fundamental, inscrito no art. 5º, XLVI da Constituição da República) não se limita à quantidade da pena; o seu regime e a modalidade da reprimenda imposta também compõem essa ideia, que carrega em si a proporcionalidade da pena. Se o Código Penal determina que, fixada a sanção em patamar inferior a 4 anos de reclusão, o regime inicial de pena há de ser o aberto quando as circunstâncias forem todas favoráveis ao agente (art. 33, § 2º c/c 59, do CPB), permitindo também substituir a reprimenda privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44 do CPB), não há razão para impor-se a condenados pela modalidade mais tênue do crime de tráfico de entorpecentes o mesmo regime de pena que, ex vi lege, se costuma impingir somente a quem é condenado por outros crimes, ou mesmo por tráfico, a mais de 8 anos de pena, ou a reincidentes ou portadores de circunstâncias desfavoráveis.
A documentação, trazida em aditamento à impetração, alude a 1100 homens e mulheres que cumprem pena em regime fechado no sistema penitenciário do Estado de São Paulo, e sem lhes haver sido autorizada a conversão da privativa de liberdade em restritiva de direitos, a despeito de terem sido condenados à sanção mínima do tráfico privilegiado (1 ano e 8 meses de reclusão), ou, quando muito, a uma pena menor que 4 anos de reclusão. A menos que cumpram pena por outro motivo, são pessoas que se encontram indevidamente recolhidas ao precário sistema penitenciário, onerando ainda mais a sociedade, que poderia se beneficiar com serviços comunitários, houvessem as respectivas sanções reclusivas sido convoladas em restritivas de direito.
Se a lei é, na visão de julgadores, benevolente com algum tipo de crime, compete ao Congresso Nacional, legitimado pelo voto popular, modificá-la (sempre sujeito, evidentemente, ao controle de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal). Não cabe ao Poder Judiciário, o uso de discursos metajurídicos de matiz ideológico ou moral, para incrementar o rigor do sistema punitivo e para contornar, com argumentos aparentemente jurídicos, os limites impostos pela lei penal e pela jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, os quais, como visto, pela Constituição da República têm a especial competência para interpretar e uniformizar a lei federal e a Constituição em última instância, ante idênticas situações fáticas.
Habeas Corpus concedido, para:
Em relação ao paciente individualizado na impetração, fixar o regime aberto como modo inicial de cumprimento da pena.
Em relação aos presos que, conforme informação da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, se encontrem na mesma situação (condenados, por delito de tráfico privilegiado, a 1 ano e 8 meses, em regime fechado), fixar o regime aberto.
Em relação aos presos condenados, pelo delito de tráfico privilegiado, a penas menores do que 4 anos de reclusão – salvo os casos do item anterior – determinar que os respectivos juízes das Varas de Execução Penal competentes e responsáveis pela execução das sanções dos internos reavaliem, com a máxima urgência, a situação de cada um, de modo a verificar a possibilidade de progressão ao regime aberto em face de eventual detração penal decorrente do período em que tenham permanecido presos cautelarmente.
Aos condenados que atualmente cumprem pena por crime de tráfico privilegiado, em que se reconhecem todas as circunstâncias como favoráveis, e aos que vierem a ser sancionados por tal ilicitude (mesmas circunstâncias fáticas), determinar que não se imponha – devendo haver pronta correção aos já sentenciados – o regime inicial fechado de cumprimento da pena.
Determinação para que se dê cumprimento desta ordem de Habeas Corpus, inclusive para que se providencie, junto aos respectivos juízos, a imediata expedição de alvarás de soltura aos presos que, beneficiados pelas medidas ora determinadas, não estejam presos por outros motivos.

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